16 de junho de 2010

CORAÇÃO DE VIDRO




Em meu recanto literário forço a memória para recordar a primeira obra ali impressa, e então viajo até o ano de 1986.

Vejo-me na sala de aula, na companhia de colegas cujos rostos ainda permanecem na lembrança, ao lado da professora que organiza os grupos para a representação teatral de Coração de Vidro, de José Mauro de Vasconcelos.

Escrito em 1964, o texto que trata do apogeu e declínio de uma fazenda hoje me parece atemporal.

Quatro histórias se entrelaçam em meio à vaidade, insensatez e orgulho, de forma a alertar jovens leitores para a necessidade daquilo que denominamos responsabilidade ambiental, àquela época tratada apenas como respeito pela natureza.

Minha primeira leitura foi realizada para o teatro da escola, e com isso me concentrei em decorar as falas e os modos de meu personagem para fazer bonito. Na peça fui Dona Raquel, uma sabiá que se empoleirava na mangueira Candoca para provar-lhe os frutos maduros, que durante o ato foi representado por uma maçã. Improviso da infância, sabe?!

Reli a obra no período das férias, e só então me dei conta de seu texto comovente:

“Muita coisa aconteceu para que novas experiências de vida se desabrochassem ante os meus olhos. Muitas horas felizes decorreram até que meu coraçãozinho quase arrebentou: acabava de descobrir que estava completamente em solidão...”. - O Aquário

“Candoca sentiu que não mais existia e foi-se encolhendo por dentro das raízes e fechou os olhos de vez, pra só abri-los no reino do Nada .”A Árvore

Tenho hoje Coração de Vidro como um alerta lírico e poético para as crianças, possível de levá-las à reflexão sobre suas relações com o planeta.

Delicado, marcante e muito nutritivo. São as sensações despertadas pelo livro em mim, tal qual uma Mousse de Manga com Iogurte, cuja união do paladar, aroma e textura faz de seu sabor mais que um gosto que, subjetivo, é único.

A leitura vale a pena. Vale para você, para seu filho, para seu aluno…

Leia ouvindo What the Song #4 - Violao de 8 bits. Esse é o gosto, esse é o tom.

Imagem: Getty Images

14 de junho de 2010

O RETORNO E TERNO



Ele não foi o primeiro, mas sem dúvida foi o mais marcante.

Mineiro, teólogo, filósofo, psicanalista, professor, amante de jardins e culinária.

Nosso relacionamento teve início nos anos 90, quando uma professora parafraseou-o em uma de suas aulas afirmando que o “saber tinha sabor”.

Inquieta pelo efeito daquela frase em mim, saí à procura do autor.

Eu era uma jovem universitária, repleta de sonhos e planos, ansiosa pelas possibilidades que poderiam ocorrer à partir daquele encontro. Ele homem maduro e experiente, que embora muito disponível não me pareceu surpreso ou curioso ao me ver.

Nosso olhar se cruzou entre livros e silêncio. Eu de pé, frente a estante, ele empilhado na terceira prateleira.

Convidei-o para um almoço no restaurante acadêmico, onde ganhei beijos que transcrevo aqui:

“A alma é uma coleção de belos quadros adormecidos, os seus rostos envolvidos pela sombra. Sua beleza é triste e nostálgica porque, sendo moradores da alma, sonhos, eles não existem do lado de fora. Vez por outra, entretanto, defrontamo-nos com um rostos (ou será apenas uma voz, ou uma maneira de olhar, ou um jeito da mão...) que sem razões, faz a bela cena acordar. E somos possuídos pela certeza de que este rosto que os olhos contemplam é o mesmo que, no quadro, está escondido pela sombra. O corpo estremece.”A Cena

Mesmo faminta, não comi. Foi então que percebi que minha fome era outra; minha fome era conhecer mais daquele que eu segurava fortemente em minhas mãos, e que cuidadosamente acariciava meu espírito:

“O amante que escreve alonga os seus braços para um momento que ainda não existe. A amante que lê alonga seus braços para um momento que não mais existe. A carta de amor é um abraçar do vazio...”.Cartas de Amor

Estava apaixonada!

Foi assim que conheci e me encantei por Rubem Alves, lendo O Retorno e Terno, cujas crônicas que o compõem foram inicialmente publicas no jornal Correio Popular.

Desde então ele sempre me acompanha, seja em manhãs preguiçosas de sol, regadas a sucos de frutas, seja em noites frias, na companhia de caldos e sopas.

Sim, sucos, caldos e sopas, estes são meus paralelos gastronômicos para Rubem Alves.

Os diversos temas pontuados em suas obras misturam-se delicadamente, saborosamente, formando caldos literários de encher os olhos e dar água na boca.

O Retorno e Terno é para ser lido assim, com acompanhamentos leves, pois só eles combinam com seu texto de fácil e gostosa digestão.

Leia ouvindo Air on a G String, de Bach. Belíssima combinação!

11 de junho de 2010

PREÂMBULO



Da minha infância lembro-me bem do gosto da carambola madura tirada do pé, da textura da banana frita com mel, do bolo de fubá com coco, este último degustado na companhia de minha avó, em sua varanda de ladrilhos.

Naquela varanda ela me oferecia, além de guloseimas, "causos", histórias e suas músicas prediletas, que dividiam espaço com a algazarra dos pássaros que moravam na árvore de frutinhas vermelhas.

Quando me via sozinha, aquele lugar se transformava em salão de baile, casa de chá e muitos outros cenários – tantos quantos fossem descritos nos livros antigos que eu lia ao sabor dos quitutes preparados com amor e empenho.

Eu cresci, a presença de minha avó se fez etérea, mas elementos daquela infância saborosa, literalmente, ainda povoam meu espírito.

Hoje tenho um terraço, flores e, eventualmente, a companhia de pássaros que me remetam à algazarra de outrora.

Preparo um prato, escolho um livro e me acomodo para viver novas histórias, que muitas vezes cruzam-se com as que me eram contadas à doce voz.

Entre, escolha um volume. Apreciemos juntos o sabor do saber.