12 de novembro de 2010

O PÁSSARO RARO



O Pássaro Raro, de Jostein Gaarder, é um prato modesto, gostoso e bem humorado, que dá certo trabalho para ser degustado, assim como um bom e tradicional Siri. É custoso, mas enfrentamos sua casquinha filosófica para saborearmos um conteúdo diferente e divertido.

A “casquinha de Gaarder”, servida nos 10 contos que compõem a obra, refere-se à teimosia do ser humano em permanecer escondido sob uma carcaça, mascarando sua real essência, às vezes se enterrando na tentativa de evitar circunstâncias que angustiam, paralisam e levam a questionamentos essenciais como “quem sou”, “de onde vim”, “o que faço”, “para onde vou”...

O gosto dos contos é potencializado por entradas específicas que antecipam ou complementam a absorção de cada um deles, mas que também podem servir de digestivos filosóficos para o ingrediente que está por vir.

“E os outros, será que as outras pessoas à sua volta realmente tinham conhecimento de que existiam? Será que elas estavam mais atentas do que um rebanho de vacas no pasto? Bem pouco, se tanto. Quem não chegou ao limiar da morte também não vivenciou a vida de verdade. A vida era algo que se pensava em enterros. Ou no máximo junto ao leito de um doente.”O Diagnóstico, pág. 42

“Chamo sua atenção para algo que, segundo meus critérios, deveria abalá-lo nas suas mais profundas convicções, mas ele apenas abana a cabeça e prossegue apressadamente. Em vez de perceber que o mundo é fantástico, ele acha que estou fantasiando. E não entende absolutamente nada. Como ele precisa de um mundo previsível, ele me tacha de louco. Para que ele próprio não enlouqueça, convence a si mesmo de que alguma coisa está errada comigo. Na Antiguidade, cortavam as cabeças dos mensageiros de más notícias...”- O Crítico, pág. 119

Esse livro é um ótimo aperitivo para trabalhar questões filosóficas em sala de aula, já que os alunos poderão dividir a mesa de forma lúdica com Nietzsche, Hegel, Zaratustra e Buda, alguns dos convivas trazidos por Gaarder para essa refeição.

Para acompanhar o Pássaro ninguém melhor que o Moska, e sua interpretação de A Idade do Céu.

11 de novembro de 2010

SÓLIDOS GOZOSOS & SOLIDÕES GEOMÉTRICAS



A massa de Sólidos Gozosos & Solidões Geométricas é uma só, o olhar. Entretanto, Nelson de Oliveira a recheou com saborosas perspectivas de papéis desempenhados e relacionamentos estabelecidos, fatiando-a em 8 contos.

A delicadeza e o sabor do recheio dessa Pizza Focal surpreende-nos pelo tempero bem-humorado, o que torna singulares seus pedaços e personagens que, pelo assunto, poderiam ser insossos: a mãe que compreende o mundo pelos olhos da filha, o filho que vê através da fantasia para fugir da solidão, os amigos que buscam enxergar para além da vizinha, o olhar maravilhado dos primos pela iniciação sexual, a visão de relacionamentos efêmeros, os olhos vistos através de máscaras, o olho invejoso de quem almeja o paraíso e a percepção lunática.

“Segundo o último pedido de resgate, em duas horas eu teria que estar na Caverna do Dragão, no Playcenter, com um milhão de dólares, se quisesse ver meus irmãos vivos. Os papeletes anteriores diziam a mesma coisa, apenas o nome dos seqüestradores era diferente. Ora era o dos seres radioativos (disfarçados de jogadores de basquete), ora era o do hermafrodita castrado, e assim por diante. O que demonstra a pouca originalidade de Mefisto. E certa parvoíce, também, pois a falta de clareza nas mensagens poderia botar tudo a perder. (...) Perguntei e esperei. Os mortos, apesar da minha tentativa de comunicação, não fizeram com que o vento soprasse diferente. Uma voz do além não me sussurrou, como nos gibis e no cinema, palavras de sabedoria. Eu me achava só.” - Gotham City, pág. 36

“O deserto, meu amigo, não é só a confluência de todos os vazios: o da alma e o da vida. É também o único local onde Deus grita com os homens. Nas casas e nos templos Ele apenas sussurra. Chega a ser irritante essa insistência, por parte do Todo-Poderoso, em não erguer a voz nos ambientes fechados. Medo do quê, meu Deus? De explodir tímpanos e paredes? De fazer tremer a Asia e a África, a terra plana e a esférica? Em Sodoma e Gomorra não teve receio algum, por que teria agora?”O Dia dos Prodígios, pág. 106

A fôrma utilizada por Nelson de Oliveira para assar seu prato resultou em finais surpreendentes e inusitados, salpicados ao longo do texto por sonhos, lembranças, jogos e narrativas que reforçam nosso apetite pelo enredo imaginativo.

Mesa posta, não se importe se avistar uma Moska no prato. Ela pode embalar sua refeição com Seu Olhar.