27 de julho de 2010

PENTE DE VÊNUS



Misture paixão, morte, delírio, erotismo, sonho e uma mão cheia de medo e mistério. Leve ao fogo e em seguida sirva porções generosas. Essa é a receita de Pente de Vênus, de Heloísa Seixas.

Dosando os ingredientes com cuidado e elegância, Pente de Vênus envolve-nos em seu clima perturbador, convidando-nos à saboreá-lo com sofreguidão. A narrativa, repleta de detalhes, induz a projeção de cenas descritas em Paris, Istambul, Moscou, arrastando-nos para dentro de histórias arrepiantes.

Em alguns trechos de seus vinte e um contos o texto pode confundir o paladar, fazendo-nos acreditar que temos nas mãos um exemplar de Nelson Rodrigues ou Edgar Allan Poe, o que, apesar de provocar engasgos, não chega a ser um dissabor para os que apreciam histórias do amor assombrado.

O gosto de Ostras Gratinadas Temperadas com Pimenta Branca é sua exata proporção, harmonizando-se perfeitamente com sua atmosfera ambígua, provocante e, porque não, afrodisíaca.

“Olha-o como sempre sonhara fazê-lo, desde que o vira pela primeira vez no livro trazido por seu pai. Olha-o como talvez ele jamais tenha sido olhado, nem mesmo por seu criador. O rosto feminino, os lábios finos, o nariz clássico, cabelos em cachos, o ângulo reto do maxilar, cada milímetro daquele semblante adorado já é seu conhecido de muitos anos. Mas nunca antes ela estivera tão perto daquele que era e sempre fora seu único amor, embora feito de pedra. David. David de Michelangelo.”Viagem a Armac, pág.178

“Cercada pela moldura apodrecida da porta, estava um rosto de mulher. Olhava-a, os olhos muito abertos, mas era como se não a visse. Sob o véu de filó há muito amarelecido, os cabelos desgrenhados estavam cobertos de pó. De pó era também a superfície muito branca de seu rosto, onde uma lágrima abria um veio escuro e brilhante. Um odor de flores mortas encheu o ar e só então ela percebeu que a cabeça sem corpo estava encoberta pelo que restava de um véu e uma grinalda. Compreendeu, então, que estava diante de seu próprio fantasma.”
Nos Territórios dos Sonhos, pág.205

“Dizem que nos desertos é assim. O tempo se cobre de disfarces, as areias iguais que se estendem pela superfície morta carregam as horas sem que possamos perceber. E de repente a noite chega, como chegou agora pra mim, nesta praia assombrada. Engraçado. Estou sorrindo. (...) não sinto medo.”
Farol de Santa Marta, pág. 350

Para aumentar a inquietude à mesa, experimente-o ao som de Beyond Time, Lounge.

22 de julho de 2010

A CABANA



O gosto de A Cabana, de William P. Young, surpreende os que pretendem degustar um livro fundamentado na visão cristã tradicional com ingredientes bastante peculiares. A surpresa é ainda maior se o leitor for um defensor enfático da igreja e seus dogmas; para esses o prato pode ser indigesto.

Com seu final já explicitado no prefácio, o inesperado do livro fica por conta do encontro do protagonista com a Trindade, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, descritos de forma inusitada, com quem estabelece diálogos durante refeições capazes de deslustrar a Santa Ceia.

As conversas, discussões e questionamentos, principais ingredientes do prato, têm o claro objetivo de aconselhar, inspirar e consolar, o que deixa A Cabana na fronteira com a auto-ajuda, sendo separada desta pela utilização da reflexão no lugar da receita, uma sutil e honrada distância.

Salpicado por metáforas, o livro destitui Deus de seu lugar de senhor absoluto apresentando sua condição humana, abrandando desta forma o abismo estabelecido entre Ele e sua criação. A dimensão do relacionamento com Abba coalha os condicionamentos religiosos, enfraquecendo seus clichês e estereótipos, aproximando-nos de um Deus vivo.

Após saborear A Cabana, estabelecer um único gosto seria até herético, pois suas possibilidades são do tamanho da fome e da fé daquele que se senta à mesa para apreciá-lo. Assim, sugiro um banquete como seu paralelo, no qual o leitor determinará seu próprio gostar, ou não.

“Há ocasiões em que optamos por acreditar em algo que normalmente seria considerado absolutamente irracional. Isso não significa que seja mesmo irracional, mas certamente não é racional. Talvez exista a supra-racionalidade: a razão além das definições normais dos fatos ou da lógica baseada em dados. Algo que só faz sentido se você puder ver uma imagem maior da realidade. Talvez seja aí que a fé se encaixa.”Pág. 61

“O olhar de Mack seguiu o dela, e pela primeira vez ele notou as cicatrizes nos punhos da negra, como a que agora presumia que Jesus também tinha nos dele.”Pág. 86

“Presenciar a expressão de tamanho amor parecia deslocar qualquer entrave lógico e, ainda que ele não soubesse exatamente o que sentia, era muito bom. Estava testemunhando algo simples, caloroso, íntimo e verdadeiro. Isso era sagrado.”Pág. 98

“(...) falando de modo simples, religião, política e economia são ferramentas terríveis que muitos usam para sustentar suas ilusões de segurança e controle.”Pág. 166

“Se você puser Deus no topo, o que isso realmente significa? Quanto tempo você me dá antes de poder cuidar do resto do seu dia, da parte que lhe interessa muitíssimo mais?”Pág. 193

Reforce o sabor da refeição ouvindo Breathe, de Michael W. Smith.

21 de julho de 2010

O MENINO DO PIJAMA LISTRADO



Holocausto. A simples menção da palavra me revirava o estômago, e assim foi até experimentar O Menino do Pijama Listrado, de John Boyne, que deixou um gosto de “quero saber mais sobre”.

Sem trazer a História à mesa, o livro trata a prepotência nazista, a atrocidade de suas medidas discriminatórias e outros elementos da 2º Guerra Mundial de forma sutil, muitas vezes implícita, fazendo trabalhar nossa imaginação e aumentar a angústia pelo que não é revelado.

O sabor forte da obra é aliviado pelo tempero de um contexto familiar e por uma perspectiva extremamente inocente do protagonista, o que, entretanto, não facilita a digestão dos acontecimentos.

Tal qual uma Farofa de Carne Seca, O Menino do Pijama Listrado sem dúvida merece ser apreciado, mesmo sendo difícil engolir (os fatos que originaram o livro) ingredientes tão ressequidos. Por essa característica o prato demanda acompanhamentos úmidos, como a emoção oferecida pela ingenuidade e amizade entre Bruno e Shmuel, os garotos que transformaram uma cerca na ponte que os conduziu por um caminho pungente.

“Era como se fosse completamente outra cidade, todas aquelas pessoas morando e trabalhando bem ao lado da casa em que ele vivia. E será que eram mesmo tão diferentes? Todos no campo usavam as mesmas roupas, aqueles pijamas com bonés de pano também listrados; e todos que passavam pela sua casa (...) vestiam uniformes de variadas qualidades e gruas de condecoração e quepes e capacetes com grandes braçadeiras vermelhas e negras e traziam armas e estavam sempre com o semblante terrivelmente severo, como se tudo aquilo fosse muito importante e ninguém pudesse pensar diferente. Qual era a diferença, exatamente? (...) E quem decidia quem usava os pijamas e quem usava os uniformes?” – Pág. 91

“Então Shmuel fez algo que nunca havia feito antes: ele ergueu a parte de baixo da cerca como sempre fazia quando o amigo lhe trazia comida, mas desta vez ele estendeu a mão por baixo e a manteve lá, esperando até que Bruno fizesse o mesmo. Os dois meninos apertaram as mãos e sorriram um para o outro. Foi a primeira vez que eles se tocaram.” – Pág. 152

“Na verdade, para onde quer que ele olhasse, só via dois tipos de gente: se não eram soldados felizes, sorridentes e gritalhões nos seus uniformes, então eram pessoas infelizes e choronas de pijama listrado, a maioria das quais parecia estar olhando para o nada, como se estivessem de fato adormecidas.” – Pág. 180

O tom da obra é dado por James Horner, em Black Smoke.

19 de julho de 2010

O ANTINARCISO



Definitivamente, esse exemplar não é para quem gosta de pratos adocicados, marcados por finais felizes. Sim, porque todos os personagens de seus 12 contos estão condenados ao fracasso, em toda e qualquer perspectiva.

Também não é para quem julga o prato pela aparência, ou o livro pela capa, visto que nesta temos uma visão turva e desfocada de nós mesmos, o que pode predizer um encontro com nossa própria natureza, ao mesmo tempo nobre e miserável.

Salpicado por elementos cotidianos que normalmente estão escondidos na despensa, Antinarciso é para ser degustado em um dia fresco e em prato fundo, isso para que o calor não nos consuma e para que não se derrame à mesa porções de relações mal sucedidas, infâncias infelizes, frustrações ou crises existenciais.

Saborear essa verdadeira Rabada, absorvendo seus personagens que parecem não se importar com suas realidades e destinos, exige-nos certa complacência; caso contrário, corremos o risco da deselegância, transformando uma boa e bem-humorada conversa de almoço em sessão terapêutica, tentando salvá-los (salvarmo-nos) de um mundo narcisista, destituído de sentido, com escassa possibilidade de felicidade.

O prato é gordo, e para nos ajudar a finalizá-lo Mário Sabino utiliza linguagem contemporânea, clara e concisa, como a descrita abaixo, o que nos serve de antiácido e alivia a indisposição causada por um ou outro ingrediente mais picante:

“- Bom, tive a idéia de revê-la ao examinar um álbum antigo.

- Você tem uma foto minha?

- Não, é que nesse álbum havia umas fotos de quando eu tinha nove anos, a época em que fui apaixonado por você.

- Você faz o quê?

- Sou médico. E você?

- Prostituta.” Suzana, pág. 99

Leia se balançando ao som de Marlene Kuntz, La Lira Di Narciso.

16 de julho de 2010

DEPOIS



Organizado e traduzido por Heloísa Seixas, Depois nos serve contos de autores do século XIX capazes de deixar um gosto singular na boca, provocado por ingredientes desconhecidos, sobrenaturais, e uma pitada de humor.

Alguns dizem que a mistura desses elementos resulta em subliteratura nauseante, mas é possível encontrar quem saiba dosá-los e criar pratos para comermos rezando, literalmente, como este.

As sete histórias apresentadas possuem tempero único e envolvência suficiente para passarmos à noite em claro a saboreá-las, mas também é preciso considerar o medo de apagar as luzes.

Agridoce, de temperatura gélida, com estilo leve e sofisticado, Depois pode ser comparado a Parfait de Limão Siciliano, servido como sobremesa de um jantar regado à assuntos insólitos. Causa arrepio, esfria a alma e deixa um cheiro ácido no ar.

“Olhou as fileiras de livros por toda parte, fechando-se sobre ela como pedras desabando de uma ruína; e ouviu a voz de Parvis, vinda de muito longe, através das paredes que caíam, gritando seu nome, tentando chegar até ela. Entorpecida, Mary já não poderia ser alcançada e tampouco conseguia entender o que ele dizia. Mas em meio àquele torvelinho pôde ouvir com clareza a voz de Alida Stair, a frase dita no gramado em Pangbourne. ‘Vocês não vão saber logo, só depois de algum tempo. ’” Depois, Edith Wharton, pág. 51

“Já disse que sempre lidei com regiões para além do mundo visível, mas não disse que fazia isso sozinho. Isto, nenhuma criatura humana pode fazer; sem o apoio de outro ser vivo, qualquer um sucumbiria inevitavelmente em meio à companhia daqueles que não vivem, ou melhor, que não vivem mais.”
O Túmulo, H. P. Lovecraft, pág. 56

“Foi através daquela janela que, no dia de hoje, há exatamente três anos, o marido e os dois irmãos mais novos de minha tia saíram para caçar. Nunca mais voltaram. (...) Os corpos jamais foram encontrados. (...) Titia continua acreditando que um dia eles voltarão (...).”
– A Janela Aberta, Saki, pág. 72

“O jovem seguiu-a, escada acima. Uma luz mortiça, de origem difusa, amainava um pouco as sombras do corredor. Subiram em silêncio, pisando o carpete que adornava a escada e que talvez seu próprio vulto tivesse renegado. Parecia feito de matéria vegetal; dava a impressão de ter degradado no ar fétido e sombrio, transformando-se em líquen espesso e fazendo espalhar-se o musgo que crescia em placas na escada, viscoso sob os pés como matéria orgânica. A cada volta da escada havia nichos na parede. Talvez um dia tivessem abrigados vasos de planta. Se assim fora, certamente haviam fenecido naquele ambiente maculado e imundo. Ou talvez tivessem sido estátuas de santos que um dia ali houvera, mas não era difícil imaginar demônios e ímpios arrastando-as na escuridão rumo às profundezas sacrílegas de algum covil lá embaixo.”
O Quarto Mobiliado, O. Heny, pág. 80

“Não saberia, de forma alguma, descrever para o senhor a natureza do horror que me trespassou. Assim que me certifiquei de que aquilo era uma ilusão, como supunha, tive um terrível pressentimento a respeito de mim mesmo, sendo tomado por um terror que me enfeitiçou de tal forma, a ponto de não conseguir, durante um longo instante, desgrudar os olhos daquele pequeno monstro.”
Chá Verde, Sheridan Le Fanu, pág. 113

“Foi nesse museu que Barach deitou-se para dormir. Ele não saberia dizer por quanto tempo dormira, mas de repente viu-se novamente desperto e consciente de que algo se movia no interior do quarto.”
Sonata ao Luar, Alexander Woollcott, pág. 138

“A psicologia dos lugares, pelo menos para algumas imaginações, é muito vívida. Para o viajante, especialmente, cada acampamento tem seu tom, que pode significar boas-vidas ou rejeição. É algo que nem sempre se nota de imediato, quando se está ocupado na preparação da tenda ou do jantar, mas assim que tudo se acalma – geralmente depois da comida -, ele se apresenta.”
Os Salgueiros, Algernon Blackwood, pág. 159

Para embalar, Tchaikovsky e sua Dança da Fada Açucarada.

8 de julho de 2010

AS CRÔNICAS DE NÁRNIA



Composta por sete histórias, a série As Crônicas de Nárnia nos faz voltar à época dos contos de fadas, intercalando personagens de nossa infância com elementos de nossas crenças, o que torna este livro um volume a ser eternizado, passado de geração em geração como uma boa receita de família.

Constituem o volume único: O Sobrinho do Mago; O Leão, a Feiticeira e o Guarda- Roupa; O Cavalo e Seu Menino; Príncipe Caspian; A Viagem do Peregrino da Alvorada; A Cadeira de Prata; A Última Batalha.

Envolvente e marcante, o mundo encantado criado por C.S. Lewis subsiste paralelo ao nosso, e é habitado por figuras mitológicas e lendárias, tendo como personagem principal o Leão Aslam, responsável pela composição de contextos magníficos nas aventuras e batalhas entre o bem e o mal.

A narrativa de Lewis é capaz de nos conduzir para dentro dos contos, despertando emoções e questionamentos que dão um sabor todo especial ao livro, que apresenta um claro embasamento cristão, reflexo do protestantismo do autor.

Essa característica é pontuada em vários trechos, como por exemplo na cronologia daquela terra, cujo conceito de temporalidade foi adaptado da Bíblia: “(...) para o Senhor, um dia é como mil anos, e mil anos, como um dia.” – 2 Pedro 3:8. A geografia de Nárnia também retrata a fé de Lewis, que a descreve banhada por um oceano que finda no País de Aslam, sendo esta uma forte menção ao Céu.

O gosto deste volume faz com que não queiramos degustar suas 751 páginas, mas saboreá-las com avidez, entretanto demoradamente, para que seu paladar e essência sejam sentidos e apreendidos.

Como um Boeuf Bourguignon, Nárnia é um livro simples e ao mesmo tempo surpreendente, cujo desfecho objetivo causa-nos admiração e nos faz lamber os dedos.

A preparação de um Boeuf Bourguignon requer apenas paciência, dispensando conhecimentos mais aprofundados de culinária. Da mesma forma, Nárnia exige de seu leitor apenas disposição de espírito, já que o conhecimento de seu pano de fundo pode ser adquirido no decorrer da leitura.

Vários são os trechos que gostaria de transcrever aqui, mas registro o que me traduziu o gosto do livro:

“Eu sabia que tinha de fazer o que me dizia, porque me levantei e o segui. (...) Nunca tinha visto água tão clara e achei que se me banhasse ali talvez passasse a dor na pata. Mas o leão disse para tirar a roupa primeiro. (...) Ia responder que não tinha roupa, quando me lembrei que os dragões são, de certo modo, parecidos com as serpentes, e estas largam a pele. ‘Sem dúvida é o que ele quer’, pensei. Assim, comecei a esfregar-me, e as escamas começaram a cair de todos os lados. Raspei ainda mais fundo e, em vez de caírem as escamas, começou a cair a pela toda, inteirinha, como depois de uma doença (...). Num minuto, ou dois, fiquei sem pele. Estava lá no chão, meio repugnante. Era uma sensação maravilhosa. Comecei a descer à fonte para o banho. Quando ia enfiando os pés na água, vi que estavam rugosos e cheios de escamas como antes. (...) Esfreguei-me de novo no chão e mais uma vez a pele se descolou e saiu; deixei-a então ao lado da outra e desci de novo para o banho. E aí aconteceu exatamente a mesma coisa. Pensava: ‘Deus do céu! Quantas peles terei de despir?’. (...) Esfreguei-me pela terceira vez e tirei a terceira pele. Mas ao olhar-me na água vi que estava na mesma. Então o leão disse: ‘Eu tiro a sua pele’. (...) E quando começou a tirar-me a pele senti a pior dor da minha vida. A única coisa que me fazia agüentar era o prazer de sentir que me tirava a pele. É como quem tira um espinho de um lugar dolorido. Dói para valer, mas é bom ver o espinho sair. (...) Tirou-me aquela coisa horrível, como eu achava que tinha feito das outras vezes, e lá estava ela sobre a relva, muito mais dura e escura do que as outras. E ali estava eu também, macio e delicado(...). Nessa altura agarrou-me (...) e atirou-me dentro da água. A princípio ardeu muito, mas em seguida foi uma delícia. Quando comecei a nadar, reparei que a dor no braço havia desaparecido completamente. Compreendi a razão. Tinha voltado a ser gente. (...) Depois de certo tempo, o leão me tirou da água e vestiu-me. (...) me vestiu com uma roupa nova.” – A Viagem do Peregrino da Alvorada

Saboreie-o, demoradamente, ao som de The Call, com Regina Spektor.

Harmonização de prato, letra e alma.

7 de julho de 2010

A VOLTA POR CIMA



Leves e divertidas, eis minhas definições para as obras de Fernando Sabino.

Penso que Fernando (nossa mineiridade faz com que eu o trate assim), tal qual uma Salada de Folhas Verdes com Queijo de Cabra ao Molho Mostarda e Maracujá, tem o propósito de nos proporcionar experiências distintas para sabores do cotidiano, ressaltados e transformados pela combinação de ingredientes.

Tomei conhecimento do autor na minha infância, enquanto saciava meu apetite na estante de um tio. Lembro-me que àquela época o que despertou minha atenção foi ler sobre fatos ocorridos, ou não, em lugares por mim conhecidos. E só!

Com o passar do tempo a experiência foi ajudando-me a compreendê-lo, a apreciá-lo, até o ponto de transformá-lo em um dos meus queridinhos. De tanto ler Fernando, hoje ele me acompanha da cabeceira para a mesa, e vice versa.

Como uma boa salada, é possível saborear Fernando sem que ele se torne enjoativo. Alguns podem julgá-lo frugal, mas percebo essa característica com o paladar: sempre repetimos um prato gostoso e moderado, tal qual A Volta Por Cima, livro de contos, crônicas e histórias em que o autor escreve sobre assuntos como música, amor, morte, roubo, anatomia e outros mais.

Considerado um maître, quer dizer, mestre no gênero, trata episódios, incidentes, reflexões, encontros e desencontros com tamanha excelência que pode ser comparado ao melhor dos chefs, cozinhando idéias e palavras, compondo uma saborosa salada literária.

Prove algumas porções de A Volta Por Cima:

“Chegava tarde da noite, aborrecido, trazendo da rua uma daquelas contrariedades da juventude,e, em vez de ir chorar na cama que é lugar quente, descia o braço na bateria. Era a minha desforra. Sem aprender a tocar, e apenas tendo certo jeito, me esbaldava em toda forma de barulho a que chamava ritmo. Meu pai surgia de pijama à porta: ‘ A essa hora não, meu filho. Tenha Paciência’. Paciência tinha ele, que não me botava na rua com bateria e tudo.”A Alma da Música

“Para ver melhor, Carlinhos se aproximou da cama, chegou a cara bem perto do rosto da velha, examinou as mãos cruzadas sobre o peito: Você não falou que quando a gente morre vai para o céu? Por que ela ainda não foi?”Vovó Vai Voando

“O avião fez que ia, não ia, balançou um pouco no ar, tirou um fino na copa das árvores ao fim da pista, acabou indo. Compúnhamos um grupo grotesco, apertado ali dentro – se o avião caísse, teríamos que ser enterrados com ele, numa cova coletiva.”A Volta Por Cima

“Tinha que entender aquele complicado cerimonial mineiro (...). A primeira vez ele recusou por educação. A segunda, para ver se eu não estava convidando também por educação. A terceira, porque não sabia se havia comida que desse para ele. A quarta, finalmente, ele estava aceitando, mas não ficava bem dizer sim depois de ter dito três vezes não.”A Arte de Dizer Não

Para acompanhar a leitura, Blue Skies, com ela, Ella Fitzgerald. Porque ele gostava dela... E quem não?